Cessão de quotas x trespasse

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1. As quotas e o estabelecimento

Antes de discutir a diferença entre cessão de quotas e trespasse, é necessário conhecer a quota e o estabelecimento, objetos de cada uma dessas operações, respectivamente.

Em termos simples, a quota é a fração em que se divide o capital social. Representa quanto o sócio possui de participação societária. Por exemplo, se determinada sociedade possui capital social de 100 mil reais e os sócios decidem fracioná-lo em 100 mil quotas (considerando que cada um detém 50% de participação no capital social e que são 2 sócios), cada sócio teria 50 mil quotas.

A quota é utilizada como fator de liquidez. Se, por exemplo, determinada sociedade limitada tem capital social de 100 mil reais, e seus sócios querem dar maior liquidez a esse capital, podem fracioná-lo em 100 mil quotas, cada quota valendo 1 real. Por outro lado, se a intenção é não dar liquidez, os sócios podem fraciona-lo em 2 quotas apenas, 1 para cada sócio, cada uma valendo 50 mil reais. Tudo vai depender do objetivo dos sócios e da finalidade da sociedade.

Percebe-se que a quota não representa o negócio da sociedade, mas a expressão de como o capital social está dividido e quanto o sócio possui de participação nesse negócio. Nota-se, também, que a quantidade de quotas não é diretamente proporcional a quantidade de capital social. É, perfeitamente, possível ter capital de 100 mil reais e apenas 2 quotas, como exemplificado acima.

O art. 1.142 do CC/02 nos aponta o conceito legal de estabelecimento: “considera-se estabelecimento todo o complexo de bens organizado, para o exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária”.

O legislador atribuiu ao estabelecimento a natureza jurídica de bem. Ou seja, todos os bens que compõem o estabelecimento, em conjunto, representam um bem. O que significa que a natureza jurídica é de universalidade ou bem coletivo, mas não é uma universalidade de direito (pois os bens não estão forçosamente agrupados, como o espólio na massa falida). Observe que o artigo 1.143 do CC/02 diz que o estabelecimento pode ser objeto unitário de direito, não diz que deve ser, ou seja, é possível segregá-lo. Trata-se, portanto, de uma universalidade de fato, conforme art. 90 do CC/02.

Dito que o estabelecimento é um bem, composto de outros bens, podemos destacar como elementos integrantes do estabelecimento, por exemplo: o domínio de internet; patente; marca; modelo de utilidade; linha telefônica; o ponto comercial; a carteira de clientes; os contratos de trabalho; e o estoque.

Dada sua natureza de bem, os elementos que compõem o estabelecimento podem ser penhorados. Vejamos:

Súmula 451: “É legítima a penhora da sede do estabelecimento comercial”.

I jornada de Direito Comercial do CJP. Enunciado 7: “O nome de domínio integra o estabelecimento empresarial como bem incorpóreo para todos os fins de direito”. Podendo ser penhorado também.

Nem sempre o estabelecimento representa todo o negócio de uma sociedade. Se, por exemplo, uma determinada sociedade limitada possui 5 restaurantes (A sede e mais 4 filiais). Cada restaurante tem sua funcionalidade, cada um deles é uma unidade produtiva, isolada, e que compõe um estabelecimento em si, embora estejam todos abrigados sob o mesmo CNPJ e nome empresarial.

Cuidado! Nem todos os bens que pertence ao empresário individual integram o seu estabelecimento, existem bens que são de cunho pessoal que em nada agregam no exercício da empresa. No caso da sociedade essa diferenciação já não é tão clara, mas existem dentro da sociedade bens que não são úteis ao seu desenvolvimento e não integram o estabelecimento, por presunção. Para evitar qualquer tipo de confusão, o indicado é colocar no Contrato Social quais bens integram o negócio e quais não integram.

Explicado os conceitos de quota e estabelecimento, agora podemos discorrer sobre a cessão de quotas e o trespasse.

2. Cessão de quotas

Digamos que A e B são sócios em uma sociedade limitada. Se A e B cedem suas quotas para terceiros, qual o objeto desse contrato de cessão? Naturalmente, as quotas, a participação societária. Perceba, que não há negócio envolvendo o estabelecimento, não está sendo negociado o complexo de bens que torna a empresa possível, mas, unicamente, a participação societária dos sócios. É isto que identifica que estamos diante de um contrato de cessão de quotas, e não de um trespasse.

Sendo uma cessão de quotas, tudo aquilo que pertence à sociedade, continuará pertencendo à sociedade, tanto bens e direitos quanto obrigações e dívidas, razão pela qual não há sucessão nessa operação (não em relação às obrigações da sociedade). O que ocorre é a sucessão do novo sócio (cessionário) em relação as obrigações do antigo sócio (cedente), vejamos:

Art. 1003, parágrafo único, do CC/02:

“Até dois anos depois de averbada a modificação do contrato, responde o cedente solidariamente com o cessionário, perante a sociedade e terceiros, pelas obrigações que tinha como sócio”.

Veja que o dispositivo traz “as obrigações que tinha como sócio”. Em momento nenhum se fala das obrigações da sociedade. Não se transfere obrigação da sociedade para os sócios cedentes ou cessionários, as obrigações da sociedade continuam sendo da sociedade. É claro que nas sociedades simples puras essas obrigações são bem abrangentes, diferentemente das limitadas.

Entretanto, vale ressaltar um ponto. Se os sócios cedem suas quotas a outros sócios ou mesmo para terceiros, deixam de ser sócios, mas não deixam de ser fiadores ou avalistas caso tenham assumido essa obrigação. Pois essa obrigação não é oriunda da qualidade de sócio, não tem natureza jurídica societária, a natureza é fidejussória. O sócio deve ter muito cuidado ao assumir esse tipo de responsabilidade, porque ele pode ter que responder com seu patrimônio por dividas da sociedade mesmo depois de deixar de responder por suas obrigações como sócio.

3. Trespasse

Já sabemos que o empresário/sociedade empresária opera a empresa através do estabelecimento, que é o complexo de bens organizado exatamente para essa finalidade.

Digamos agora que A e B são sócios em uma sociedade limitada. C e D são sócios em outra sociedade limitada. Os sócios C e D deliberam comprar um dos estabelecimentos da sociedade limitada de A e B, essa compra, desde que observados os requisitos legais, é o trespasse.

Veja que, propositalmente, falamos na compra de um dos estabelecimentos. Essa provocação foi para explicar que o trespasse não necessariamente inclui todos os estabelecimentos sob o CNPJ da sociedade limitada. As vezes só interessa vender/comprar um/alguns dos estabelecimentos. Por exemplo, digamos que a sociedade, em questão, produza e venda roupas de grife própria. A sociedade de C e D quer comprar o estabelecimento relativo à parte das vendas, o varejo do negócio. Nesse caso a sociedade de A e B continuaria com o estabelecimento relativo à produção.

No trespasse também é possível alienar não só o estabelecimento por inteiro, mas alguns bens que o compõem desde que haja a transferência da funcionalidade. Se não houver a transferência da funcionalidade do estabelecimento empresarial não existe trespasse conforme enunciado n° 233, da III jornada de direito civil do CJF “A sistemática do contrato de trespasse delineada pelo Código Civil nos arts. 1.142 e ss., especialmente seus efeitos obrigacionais, aplica-se somente quando o conjunto de bens transferidos importar a transmissão da funcionalidade do estabelecimento empresarial”.

Lembre-se que no trespasse há uma mudança de titularidade dos contratos, porque deixam de ser de uma sociedade e passam a ser de outra. “Art. 1.148 CC/02 Salvo disposição em contrário, a transferência importa a sub-rogação do adquirente nos contratos estipulados para exploração do estabelecimento, se não tiverem caráter pessoal, podendo os terceiros rescindir o contrato em noventa dias a contar da publicação da transferência, se ocorrer justa causa, ressalvada, neste caso, a responsabilidade do alienante. ”

O trespasse é uma operação mais braçal que a cessão de quotas. É necessário operacionalizar toda formalidade relativa à cada bem. Por exemplo, se na operação está inclusa a marca registrada é necessário fazer a transferência da titularidade junto ao INPI, se está incluso automóvel tem que fazer a transferência junto ao DETRAN, se tem empregados tem que fazer a sucessão do contrato de trabalho e assim, sucessivamente, quando o regime do bem exigir. Nesse sentido, o enunciado n° 393, da IV jornada de direito civil do CJF, traz “a validade da alienação do estabelecimento empresarial não depende de forma especifica, observado o regime jurídico dos bens que a exijam”.

Questão interessante. Se uma determinada sociedade aliena seu único estabelecimento para outra sociedade, a primeira sociedade deixa de existir? Não. No trespasse não há a transferência do CNPJ (isso ocorre na cessão de quotas, onde se assume de fato as quotas abaixo do CNPJ). No caso, o CNPJ da sociedade continua ativo e o dinheiro da venda continua compondo o seu patrimônio. Cabe à sociedade usar o dinheiro para pagar seus credores, ou recomeçar o negócio com o mesmo ou outro objeto social, respeitando os prazos legais ou contratuais, ou tomar outros rumos, mas que fique claro, a sociedade não deixa de existir só porque alienou seu estabelecimento.

Na prática, para fazer um trespasse com formalidade completa e para eficácia plena perante terceiros, deve-se fazer o contrato de trespasse, averbar esse contrato na junta comercial, publicar o edital, notificar os credores, dando prazo para que se manifestem, ou, alternativamente, pagar todos os credores ou ainda manter bens suficientes para que os credores tenham a garantia de seu pagamento. A falta em qualquer desses requisitos, torna o negócio ineficaz perante terceiros. Nesse sentido, leia-se os arts. 1.144 e 1.145 do CC/02.

“Art. 1.144. O contrato que tenha por objeto a alienação, usufruto ou arrendamento do estabelecimento, só produzirá efeitos quanto a terceiros depois de averbado à margem da inscrição do empresário ou da sociedade empresária, na junta comercial, e de publicação na imprensa oficial”. Qualquer negócio jurídico envolvendo o estabelecimento deve observar esses requisitos.

“Art. 1145. Se ao alienante não restarem bens suficientes para solver seu passivo, a eficácia da alienação do estabelecimento depende do pagamento de todos os credores, ou o consentimento destes, de modo expresso ou tácito, em trinta dias a partir de sua notificação”. Esses requisitos são exclusivos do trespasse.

O não cumprimento dos requisitos, além de tornar o negócio ineficaz perante terceiros, caracteriza ato de falência, conforme art. 94, III, da Lei 11.101/05 e uma vez decretada a falência é ineficaz a venda perante à massa, conforme art. 129, VI da Lei 11.101/05.

Atenção! Aquele famoso “passo o ponto” que a gente tanto vê por aí, nas fachadas de lojas e galpões, podem representar trespasse informal, também conhecido como trespasse à brasileira (sem o cumprimento dos requisitos da lei) e, portanto, como dito, é ineficaz perante terceiros.

3.1. Responsabilidade

As partes são livres para pactuar de qualquer maneira, a respeito das responsabilidades anteriores à transferência, com efeito inter partes, porém com relação a terceiros a regra do art. 1.146 do CC/02 é cogente.

O enunciado n° 59 da II Jornada de direito comercial reforça o entendimento do art. 1.146 do CC/02 de que os débitos devem ser regularmente contabilizados para que haja sucessão “A mera instalação de um novo estabelecimento, em lugar antes ocupado por outro, ainda que no mesmo ramo de atividade, não implica responsabilidade por sucessão prevista no art. 1.146 do CCB”.

No mesmo sentido decidiu o STJ no AgInt no Resp 1457672/DF, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, 4° turma, julgado em 20.09.2018:

“2. A corte de origem, soberana na análise dos fatos e das provas, consignou que a simples alienação do estabelecimento não desobriga o alienante da quitação do seu passivo, sendo certo que, no caso dos autos, não houve comprovação da existência de assunção de dívida ou de sucessão empresarial.

3. O suporte fático normativo previsto no art. 1.146 do CC/02, impõe outros requisitos além da mera transferência do estabelecimento comercial para a cristalização da solidariedade entre alienante e adquirente, notadamente a exigência de regular contabilização dos débitos anteriores à alteração, circunstancia que não foi sequer alvo de argumentação da parte recursal. ”

Perceba o perigo do trespasse informal. A informalidade pode custar muito caro ao alienante. O alienante pensa estar fechando um bom negócio, porém está arrumando um problema.

Isto não é tudo, ainda existem implicações tributárias. O art. 123 do CTN aponta: “Salvo disposições de lei em contrário, as convenções particulares, relativas à responsabilidade pelo pagamento de tributos, não podem ser opostas à Fazenda Pública, para modificar a definição legal do sujeito passivo das obrigações tributárias correspondentes”. Ou seja, no trespasse informal, o alienante não se liberta nunca da obrigação tributária.

Agora, havendo o trespasse, corretamente, e para tal deve-se continuar a respectiva exploração do estabelecimento pelo adquirente, o art. 133, do mesmo dispositivo, aponta que o adquirente assume o passivo tributário, mesmo quando não contabilizado, integralmente se o alienante cessa a exploração e subsidiariamente com o alienante, se este continua ou reinicia em até 6 meses uma nova atividade no mesmo ou em outro ramo.  

3.2. Concorrência

Segundo o “art. 1.147. Não havendo autorização expressa, o alienante do estabelecimento não pode fazer concorrência ao adquirente, nos cinco anos subsequentes à transferência. ”

O prazo é de 5 anos, mas é possível pactuar prazo maior. Entretanto, para que haja concorrência antes do prazo legal é necessária autorização expressa do adquirente. Vemos que há um movimento de proteção do adquirente contra concorrência desleal do alienante, que, por vezes, tem mais capital, mais relacionamentos na área e mais expertise no ramo.

O REsp 680.815/PR, Relator ministro Raul Araújo, 4° turma, julgado em 20.03.2014 pelo STJ traz um caso sobre violação ao princípio da concorrência, por excesso do adquirente, o que nos permite ver o dispositivo, não apenas como protetivo ao adquirente, mas ao alienante também, vejamos: “Mostra-se abusiva a vigência por prazo indeterminado da cláusula de “não restabelecimento”, pois o ordenamento jurídico pátrio, salvo expressas exceções, não se coaduna com a ausência de limitações temporais em cláusulas restritivas ou de vedação do exercício de direitos. Assim, deve-se afastar a limitação por tempo indeterminado, fixando-se o limite temporal de vigência por cinco anos contados da data do contrato, critério razoável adotado no art. 1.147 do CC/02. ”

O caso é interessante porque mostra que assim como existe o limite temporal mínimo que protege o adquirente, existe também um limite máximo que protege o direito do alienante de voltar a explorar um negócio.

Ainda sobre a concorrência citamos o seguinte julgado, sobre o non compite legal, AgInt no AResp 1239219/RS, Relator ministro Felipe Salomão, 4° turma, julgado em 08.05.2018 pelo STJ: “O tribunal de origem concluiu, após análise dos elementos fático-probatório dos autos, e cláusulas contratuais, que: III) No caso ora examinado, não ocorreu a alienação de estabelecimento empresarial de forma própria, mas cessão de quotas em acordo que implicou na dissolução parcial de sociedade. O fundamento, portanto, é diverso daquele que enseja aplicação imediata do art. 1.147 do CC/02. Se houvesse cláusula expressa vedando a constituição de nova sociedade, aí sim poderia se cogitar em concorrência indevida do réu ***. Como, entretanto, não há tal disposição dentre as firmadas quando da dissolução parcial da sociedade, descabida a incidência do art. 1.147 do Código Civil e a declaração de qualquer tipo de concorrência desleal”.

O julgado é interessantíssimo. Basicamente, o brilhante relator está dizendo para não confundir trespasse com cessão de quotas. O non compite legal previsto no art. 1.147 do CC/02 ocorre no trespasse, e não na cessão de quotas. Como já exarado no texto são operações completamente diferentes. É possível sim o non compite na cessão de quotas, mas de forma contratual. Como não foi previsto no contrato, o STJ não concedeu.

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